Espuma dos dias… sobre a invasão do Iraque em 2003 — “A importância dada a John Bolton prova que a sociedade está doente”. Por Caitlin Johnstone

Seleção e tradução de Francisco Tavares

9 min de leitura

A importância dada a John Bolton prova que a sociedade está doente

De toda a terrível apologia revisionista de crimes de guerra lançada durante o 20º aniversário da invasão do Iraque pelos EUA, o pior é um artigo da National Review do próprio sacerdote do genocídio.

 

 Por Caitlin Johnstone

Publicado por  em 24 de Março de 2023 (ver aqui)

Publicação original por  em 21 de Março de 2023 (ver aqui)

 

 

A fim de gerir narrativamente a conversa pública sobre a Guerra do Iraque no 20º aniversário da invasão, aqueles que ajudaram a desencadear esse horror sobre o nosso mundo fizeram uma breve pausa na sua torrente implacável de “a Ucrânia prova que os falcões tinham sempre razão”, para fazer explodir um dilúvio de “Na verdade, a Guerra do Iraque não se baseou em mentiras e afinal de contas acabou por resultar bastante bem”.

O chefe do Conselho das Relações Exteriores Richard Haas – que trabalhou no Departamento de Estado dos EUA sob o comando de Colin Powell quando Bush lançou a sua criminosa invasão – publicou um artigo em Project Syndicate alegando falsamente que o governo dos EUA e o seu antigo chefe não mentiam sobre armas de destruição massiva, e que “os governos podem equivocar-se, e fazer coisas erradas, sem mentir”.

O antigo escritor de discursos de Bush, David “Eixo do Mal” Frum, cozinhou um artigo cheio de mentiras para o The Atlantic, afirmando que “o que os EUA fizeram no Iraque não foi um acto de agressão não provocado” e sugerindo que talvez os iraquianos estejam melhor como resultado da invasão, ou pelo menos não estão pior do que estariam de outra forma.

O neoconservador propagandista de guerra Eli Lake, que foi descrito pelo jornalista Ken Silverstein como “um promotor aberto e fervoroso da Guerra do Iraque e dos vários mitos que foram apregoados para a justificar”, tem um ensaio publicado em Commentary com a extraordinária afirmação de que a guerra “não foi o desastre que todos dizem que foi” e que “o Iraque está melhor hoje do que há 20 anos atrás”.

Mas de longe a mais terrível peça de apologia revisionista do crime de guerra que foi publicada durante o 20º aniversário da invasão foi um artigo publicado no National Review pelo próprio John Bolton, o próprio sacerdote do genocídio.

Misturar tudo como fazem os críticos da “Guerra do Iraque” é um mau serviço à análise cuidadosa do que a América realizou, ou não realizou. Não é um bloco de granito indivisível, com 20 anos de duração, que só pode ser julgado tudo ou nada. De facto, o grosso de https://t.co/2lhQ3EnqWW

– John Bolton (@AmbJohnBolton) 17 de Março de 2023

Bolton distingue-se dos seus colegas arquitectos de guerra do Iraque ao argumentar que a invasão e derrube de Saddam Hussein “foi quase perfeita”, e que a única coisa que os EUA fizeram de errado foi não matar mais pessoas e derrubar o governo do Irão.

Bolton critica “a incapacidade da administração Bush de aproveitar a sua presença substancial no Iraque e no Afeganistão para entretanto procurar uma mudança de regime no Irão”, escrevendo que “tivemos uma clara oportunidade de dar poder à oposição iraniana para depor os ayatollahs”.

“Infelizmente, porém, como aconteceu após a expulsão de Saddam do Kuwait em 1991, os Estados Unidos pararam demasiado cedo”, escreve Bolton.

Bolton afirma que as sanções notoriamente cruéis que foram infligidas ao Iraque entre 1991 e 2003 foram demasiado brandas, dizendo que deveria ter havido “sanções esmagadoras” que fossem “aplicadas a sangue frio”.

Como Eric Boehm observa no blog Reason na sua crítica ao artigo de Bolton, talvez a parte mais irritante seja quando Bolton descarta qualquer responsabilidade que os EUA possam ter pelas consequências e repercussões da invasão do Iraque, tentando separar a “impecável” invasão inicial de toda a desestabilização e sofrimento humano que se seguiu dizendo que isso “não derivou inevitavelmente, inexoravelmente, deterministicamente, e inalteravelmente da decisão de invadir e derrubar”.

“Qualquer que seja a média de acertos de Bush nas decisões pós-Saddam (não perfeita, mas respeitável, a meu ver), ela é separável, conceptual e funcionalmente, da decisão de invasão. A história subsequente, para o bem ou para o mal, não pode diminuir a lógica, necessidade fundamental, e sucesso do derrube de Saddam”, escreve Bolton.

Isto é obviamente absurdo. Um belicista da administração Bush argumentando que não se pode logicamente ligar a invasão às suas consequências é como um pirómano dizendo que não se pode logicamente ligar o ter ateado um um incêndio na sala de estar à incineração de toda a casa. Ele está apenas a tentar subtrair-se a qualquer responsabilidade por essa guerra e o seu papel na mesma.

“Pode-se suspeitar que Bolton imagina um mundo onde as acções não deveriam ter consequências porque ele vive exactamente nesse tipo de mundo há duas décadas”, escreve Boehm. “De alguma forma, ele manteve o seu estatuto em Washington como perito em política externa, comentador dos media e conselheiro presidencial, apesar de ter estado tão horrivelmente errado sobre o Iraque”.

É preciso um tipo especial de arrogância e uma séria falta de respeito pelas vidas de outros seres humanos para se sentar aqui, no ano 2023, e argumentar que o verdadeiro problema com as guerras pós-11 de Setembro na América é que *eles não foram suficientemente longe.*

O meu último artigo em @Reason: https://t.co/5gd4kH83Fb

– Eric Boehm (@EricBoehm87) 20 de Março de 2023

E isso, para mim, é o que é mais assombroso em relação a tudo isto. Não que John Bolton ainda no ano 2023 pense que a invasão do Iraque foi uma grande ideia e que deveria ter ido muito mais longe, mas que o tipo de psicopata que diria tal coisa continua a ser um proeminente especialista dos meios de comunicação social, que é promovido pelos meios de comunicação social mais influentes do mundo pela sua “perícia”.

Na verdade, é um indício completamente condenatório de todos os meios de comunicação social ocidentais, se pensarmos bem, e realmente de toda a nossa civilização. O facto de um psicopata real, literalmente, cujo objectivo na vida é tentar fazer com que o maior número possível de pessoas sejam mortas pela violência em todas as oportunidades, ser habitualmente colunista e dar entrevistas no The Washington Post, e aparecer regularmente na CNN como analista especializado, prova que toda a nossa sociedade está doente.

Para ser clara, quando digo que John Bolton é um psicopata, não estou a usar a hipérbole para marcar uma posição. Estou simplesmente a expressar a única conclusão lógica a que se pode chegar ao ler relatórios sobre coisas como a forma como ele ameaçou os filhos do chefe da OPCW-Organização para a Proibição de Armas Químicas, cujos esforços diplomáticos bem sucedidos no início de 2002 estavam a dificultar os argumentos a favor de uma invasão, ou como ele passou semanas a abusar verbalmente de uma mulher aterrorizada no seu quarto de hotel, a bater-lhe à porta e a gritar-lhe obscenidades.

theintercept.com

“Nós sabemos onde vivem os seus filhos”: Como John Bolton uma vez ameaçou um funcionário internacional

“John Bolton é um rufia”, disse José Bustani, um diplomata brasileiro reformado. “Não sei como as pessoas podem trabalhar para ele”.

 

Esta é precisamente a personalidade de Bolton. As reais políticas que ele impulsionou, por vezes com sucesso, são muito mais horripilantes. Ele é a aberração que defendeu raivosamente o bombardeamento do Irão, o bombardeamento da Coreia do Norte, o ataque a Cuba por causa de armas de destruição massiva inexistentes, o assassinato de Muammar Gaddafi da Líbia, e muitos outros actos de guerra. Que ajudou a encobrir o escândalo Irão-Contra, que admitiu abertamente participar em golpes contra governos estrangeiros, e que tentou levar o Presidente Donald Trump a iniciar uma guerra com o Irão durante o sua aterradora etapa como conselheiro de segurança nacional dos EUA.

Este homem é um monstro que deveria estar numa jaula, mas em vez disso é uma das vozes mais influentes no país mais poderoso da Terra. Isto porque somos governados por um império gigantesco que se mantém unido pelo tipo exacto de ideologia assassina que John Bolton promove.

Bolton não é elevado à amplificação máxima, apesar da sua sede de sangue psicopata, mas exactamente por causa dela. Este é o tipo de civilização em que vivemos, e este é o tipo de ambiente mediático em que os ocidentais estão a formar as suas visões do mundo. Somos governados por tiranos assassinos, e somos propagandeados a aceitar os seus assassinatos pelos meios de comunicação de massas que enaltecem psicopatas sanguinários como John Bolton como parte dessa propaganda.

Esse é o mundo em que vivemos. É isso que enfrentamos aqui.

 

“A Guerra do Iraque foi um empreendimento nacional. O seu amplo apoio interno deveu-se em grande medida à promoção dos interesses vitais do Estado tal como estes eram entendidos em relação ao papel da América numa ordem global decente e duradoura”.

E é por isso que eles se têm esforçado tanto para reescrever a história do Iraque. Precisam que aceitemos o Iraque como um bem maior que veio a um preço elevado ou como um erro terrível que nunca se repetirá, para que nos possam conduzir a guerras mais horríveis no futuro.

Estão a dar-nos “música”. Até agora, a palavra “Iraque” tem sido uma devastadora refutação do horror e do fracasso do intervencionismo dos EUA. Os artigos que estes imperiais fabricantes de imagem têm vindo a produzir são os primeiros discursos num longo esforço de jogo para retirar o significado histórico e o poder dessa palavra. Não os deixe mudar esse significado e esse poder nem um centímetro.

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A autora: Caitlin Johnstone é uma jornalista independente e rebelde de Melbourne (Austrália), apoiada pelos seus leitores. É a autora do livro de poesia ilustrado “Woke: A Field Guide For Utopia Preppers.”

O seu trabalho é inteiramente apoiado por leitores e o seu sítio é aqui.

 

 

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